Em terras de quem?

Publicado por Ana Lacerda em

Ana Lacerda é advogada especialista em Direito Agrário e Ambiental

Em 1º de maio de 1.500, Pero Vaz de Caminha escreve “Carta a el-Rei Dom Manoel sobre o achamento do Brasil”. O documento trata do encantamento dos europeus pelo “Novo Mundo”.

Em determinado trecho do texto, narra o português: “a saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao Sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!”. E estava posta e instalada a confusão!

Passados mais de 500 anos do episódio relatado, as terras brasileiras são frequentes objetos de contendas judiciais e extrajudiciais. Mais especificamente, os imóveis rurais têm figurado em conflitos comumente.

A matéria agrária está atrelada a relações jurídicas, econômicas e sociais provenientes do setor primário, que engloba agricultura, pecuária, pesca e extrativismo mineral e, por consequência reverbera no meio ambiente, em questões de industrialização, transportes e em todos os segmentos do segundo e terceiro setores da economia. É, pois, a terra, o berço de riquezas e o ponto de partida para o desenvolvimento econômico nacional.

É, portanto, a posse da terra interesse de muitos e, assim, centro de disputas que se arrastam no Judiciário brasileiro, avolumando os estoques processuais desse Poder.

O modo mais eficaz de garantir que seu imóvel ficará protegido de investidas prejudiciais é documentando-o e tornando-o regular. O ramo do Direito que trata dessas questões é o Direito Agrário, entretanto, é necessário e importante fazer algumas considerações sobre ele:

Esse ramo regula as relações jurídicas do homem com a terra, prevê as normas que regerão o aproveitamento do imóvel rural, em razão da atividade agrária. Essas normas intencionam conferir uma função social à terra, bem como disciplinar a exploração de recursos de modo a garantir a necessária preservação e sustentabilidade correspondentes. Fica implícita a ideia de que, já prevista no Direito Agrário, a exploração da terra com o viés de desenvolvimento econômico é permitida, entretanto, com ressalvas.

Ademais das normas que garantem a preservação, e de ter em vista que o panorama do Direito Agrário ser interdisciplinar, abarcando conceitos sociais, estudos da economia agrária, inter-relação com estatísticas, dados de produção e fluxo dos produtos; o principal e primeiro passo a fim de que se tenha segurança jurídica sobre a terra é a devida documentação do imóvel rural.

O imóvel rural se constitui, na legislação vigente, no art. 4º, inciso I do Estatuto da Terra, do seguinte modo: “imóvel rural, prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine a exploração extrativa agrícola, pecuária, ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através da iniciativa privada.”. Outro dispositivo que conceitua esse tipo de imóvel é a Lei nº 8629/93, também em seu art. 4º, inciso I: “móvel rural, prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa, vegetal, florestal ou agroindustrial.”

Legalizar um imóvel garante que ele valha mais quando for objeto de relações comerciais. Quando os imóveis estão irregulares em algum aspecto, em geral, são negociados por valores abaixo dos previstos no mercado.

Nesses casos, os potenciais compradores podem alegar os gastos que terão advindos da futura legalização. Outra questão importante nesse sentido é que instituições financeiras e imobiliárias não costumam aceitar imóveis irregulares nas negociações sejam de vendas ou financiamentos. O próprio uso comercial da terra, bem como a contratação de funcionários requer que a documentação territorial esteja em dia.

As ilegalidades verificadas em imóveis rurais também podem acarretar notificações, multas, desapropriações e até mesmo, em casos mais graves, a demolição da construção e benfeitorias levantadas no local.

É bem verdade que os custos para legalização são um incômodo no bolso do brasileiro que, diga-se de passagem, já vive sobrecarregado com taxas e encargos sem fim, porém, em comparação com as multas que podem ser aplicadas em decorrência da inadequação documental, os impostos de regularização representam um valor relativamente baixo, principalmente quando referenciados pelo valor da propriedade.

Há que se pensar ainda que enquanto o imóvel não está devidamente documentado com o nome do seu comprador, ele ainda pertence ao vendedor. Sob essa perspectiva, regularizar evita que o comprador e/ou proprietário sejam vítimas de golpes.

Dentre as providências que se tem que tomar para andar legalmente com o imóvel, está a emissão do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR, que se tornou obrigação anual a partir de 2017 e é imprescindível para operações de crédito rural. É possível emitir esse documento por 2 sites – aqui e aqui.

Aqueles proprietários que preferem lidar pessoalmente, podem se dirigir a uma Unidade Municipal de Cadastramento (UMC). Além do CCIR, é preciso manter atualizado o Cadastro Ambiental Rural (CAR), Imposto Territorial Rural (ITR), declaração anual de acordo, entre outras obrigações fiscais.

A matrícula também deve ser um item regular dos imóveis rurais, no qual não pode haver divergência quanto a quem figura como proprietário e quem está na posse do bem. A perda ou inexistência do título que deu origem ao negócio também é fato gerador de muitos conflitos.

É preciso certificar os limites da propriedade por intermédio de georreferenciamento, Lei 10.267/2001 e art. 176 da Lei de Registros Públicos, e a atualização cadastral no INCRA e Ibama quando necessário. Outro ponto é a atenção a como a localização do imóvel se relaciona com áreas de preservação gerais e específicas. É importante lembrar ainda que cada atividade possui um modo de atuação normatizado próprio.

Imóvel rural com pendências de regularização representa ativo imobilizado, paralisador de progresso econômico e impeditivo de aproveitamento e função social. Vale a pena a busca de um profissional competente para orientar sobre essas questões e evitar transtornos oriundos do descumprimento de algum desses quesitos.

Já avisou Pero Vaz de Caminha do valor desta terra: “contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados […] Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo […]”. De 1500 para 2018.

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