FUNRURAL – UMA DESCIDA AO INFERNO
A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
Tanto se opõe, que mata o caminhante.
Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
E fome, impando, mais do que de antes sente.
(Dante Alighieri, a Divina Comédia)
Apesar do Supremo Tribunal Federal (RE 718.874/RS) e apesar do Senado Federal (Resolução 15, publicada no DOU de 13 de setembro de 2017), nada está resolvido, nada está decidido, quanto aos valores pretéritos. Tanto quanto no alerta de Virgílio, a Dante, no caminho do inferno, o produtor rural vê-se às voltas com o fundado temor de ser devorado pelo Fisco, na questão alusiva à contribuição para o FUNRURAL. Que fazer? Aderir ao REFIS, cujo prazo de validade é 29/09/2017, ou seja, em duas semanas, ou aguardar a conversão da MP com uma (im) provável prorrogação? As demais possibilidades são irreais.
A contribuição para o FUNRURAL, da forma como conhecida na atualidade, isto é, sem ser sobre a folha de pagamento, foi instituída pela lei 8.540/92, que alterou a Lei 8.212/91. Posteriormente, nova redação adveio da Lei 9.528/97. A configuração originária do FUNRURAL foi decretada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 363.852/MG (caso Frigorífico Mata-Boi) confirmada pelo RE 596.177/RS, em recurso decidido sob o regime de repercussão geral.
Apontou-se, em resumo, nos referidos precedentes, que as normas instituidoras do FUNRURAL são inconstitucionais porque ofendem à redação originária do artigo 195 seja ao alargar o conceito de resultado da produção, então contido na Carta, ao atribuir suporte material mais amplo (verbo e complemento) estabelecendo a receita bruta como base de cálculo da exação; seja ao alargar o critério pessoal da regra matriz ao prever incidência para os produtores rurais com empregados, também à revelia do que dispunha a constituição.
Antes disso, a Suprema Corte entendeu que matéria, à luz do ordenamento jurídico de então, demandava lei complementar, enquanto veículo legislativo, forte no disposto na então redação do artigo 195, §4º, da Carta, motivo pelo qual pronunciou-se inconstitucionalidade formal das leis 8.540/1992 e 9.528/1997, bem como dos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei 8.212/91.
Naquela oportunidade, a tese, em repercussão geral, no RE 596.177/RS-RG, foi a seguinte:
“É inconstitucional a contribuição, a ser recolhida pelo empregador rural pessoa física, incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização de sua produção, prevista no art. 25 da Lei 8.212/1991, com a redação dada pelo art. 1º da Lei 8.540/1992”.
Agora, no RE 718.874/RS-RG, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento ainda não finalizado, preconiza a constitucionalidade da exação, pelo menos a partir de 2001, sob os seguintes fundamentos, constantes do voto do Ministro Alexandre de Moraes: a) a Lei 10.256/2001 é posterior à EC 20/1998 e foi suficientemente clara ao alterar o caput do artigo 25 da Lei 8.212/1991 e reestabelecer a cobrança do FUNRURAL, se substituindo às leis anteriores, consideradas inconstitucionais; e, b) os incisos do artigo 25 da Lei 8.212/1991 nunca foram retirados do mundo jurídico e permaneceram perfeitamente válidos.
Por outro lado, o Ministro Dias Toffoli entendeu que: a) a Lei 10.256/2001, ao dar nova redação ao caput do artigo 25 da Lei 8.212/1991, respeitou a técnica legislativa. Segundo ele, no julgamento dos REs 363852 e 596177, ao tratar do tema, o Supremo não declarou a inconstitucionalidade da íntegra dos dispositivos em debate; b) a utilização da receita bruta proveniente da comercialização da produção como base de cálculo para a contribuição do produtor rural pessoa física, disse o ministro Toffoli, tem respaldo constitucional, e está abrangida pela expressão “receita”, constante do artigo 195 (inciso I, alínea ‘b’) da Constituição Federal, com a redação dada pela EC 20/1998.
O resultado do julgamento foram 6 (seis) votos em favor da constitucionalidade do FUNRURAL (Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia), contra 5 (cinco) votos pela inconstitucionalidade (Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello).
A tese foi fixada com a seguinte redação:
“É constitucional formal e materialmente a contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/2001, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção.”
Abstraindo-se os argumentos de lado a lado, e, ainda, tomando-se por certo, nestes tempos de incertezas, que o Supremo Tribunal Federal mantenha o atual quadro decisório, verifica-se que nuvens cinzentas páiram no horizonte da produção rural no que diz respeito às contribuições devidas a partir da publicação da lei 10.256, de 09 de julho de 2001, declarada constitucional no julgamento do RE 718.874/RS-RG.
As incertezas surgiram no próprio julgamento do extraordinário em referência já que a Suprema Corte, responsável pela segurança jurídica na interpretação de matéria constitucional, preferiu não manifestar-se sobre a modulação temporal dos efeitos da decisão, conforme lhe permite o artigo 27, da Lei 9.868/99.
Ao não decidir, sobre o quê deveria ter decidido, o Supremo, ainda que de forma involuntária, lançou o produtor rural, pessoa física, contribuinte do FUNRURAL, no éter, ou seja, no nada, vez que nada se pôde concluir a respeito do julgado que não fosse pela constitucionalidade da lei, de resto presumida. Subsistem as dúvidas sobre as parcelas pretéritas e o destino de bilhões de reais em depósitos judiciais.
Por outro lado, e como se não fosse pouco a noticiada omissão da Suprema Corte, a insegurança se ampliou a partir da publicação, no dia 13/09/2017, portanto, há menos de uma semana, da Resolução n.º 15, do Senado Federal, que dispõe:
Art. 1º É suspensa, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, a execução do inciso VII do art. 12 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a execução do art. 1º da Lei nº 8.540, de 22 de dezembro de 1992, que deu nova redação ao art. 12, inciso V, ao art. 25, incisos I e II, e ao art. 30, inciso IV, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, todos com a redação atualizada até a Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997, declarados inconstitucionais por decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 363.852.
Foi o suficiente para muitos afirmarem que “não existe mais fundamento jurídico para a cobrança do FUNRURAL” e que a situação jurídica do produtor rural, no que tange ao referido tributo, estaria “resolvida”. Nada mais equivocado. Virgílio avisa.
O produtor rural pessoa física que recolheu, que não recolheu ou que depositou os valores do FUNRURAL, sob a égide da Lei 10.256/2001, não saberá seu destino pelo menos até que o Supremo Tribunal Federal digne-se a analisar a modulação temporal dos efeitos de sua decisão. O mesmo se diz dos responsáveis tributários que obtiveram decisões judiciais em seu favor. O quadro é de incerteza. Ou melhor, a única certeza é a de que o gravame é devido, já que, de fato, houve a declaração da constitucionalidade da exigência.
De resto, quanto aos valores pretéritos, com todo o respeito devido e merecido ao nosso Senado Federal, e à sua resolução, a viagem ao inferno continua vez que não resolve o problema dos produtores rurais, es responsáveis tributários, dependentes que ainda continuam de nova decisão do Supremo Tribunal Federal. Trata-se, ao que parece, mais de uma “satisfação” à base eleitoral de alguns integrantes do Congresso Nacional e de algumas entidades representativas do agronegócio, que propriamente uma medida com efeitos práticos no campo da (in) exigibilidade da obrigação.
Aliás, deve ser observado que a Resolução n.º 15/2017, do Senado, muito embora se diga respeito ao FUNRURAL, não se refere à última decisão do Supremo Tribunal Federal, no RE 718.874/RS-RG que afirmou a constitucionalidade sim da Lei 10.256/2001. A resolução se remete à primeira decisão do STF, no RE 363.852/MG (caso Frigorífico Mata-Boi), que pronunciara-se sobre a inconstitucionalidade da exigência, à luz do direito de então.
Diferentemente, a decisão do Supremo, no RE 718.874/RS-RG afirmou a constitucionalidade da exigência à luz da Lei 10.256/2001 que, de fato, alterou a redação da Lei 8.212/91, mas, e aqui é importante, à luz de um novo ordenamento constitucional (EC 20/98). Ou seja, a Lei 10.256/2001, segundo o Supremo, encontra fundamento de validade no Texto Magno por estar em conformidade com as disposições da EC 20/98.
Diga-se, por oportuno, que as conclusões do Supremo Tribunal Federal, no RE 718.874/RS-RG são questionáveis, conforme aponta a doutrina. Entretanto, o caso do FUNRURAL há muito deixou de pertencer ao campo da Justiça. A questão é de segurança jurídica, e de equilíbrio das contas públicas. Há uma miríade de interpretações fazendárias possíveis para o fim de possibilitar ao Fisco apropriar-se dos depósitos (conversão em renda) dos precavidos contribuintes que confiaram no entendimento do caso Mata-boi.
Para completar o quadro dantesco, recorde-se que no próximo dia 29/09/2017 vence o prazo dado pelo artigo 1º, § 2º, da MP 793/2017, para adesão ao Programa de Regularização Tributária Rural – PRR. O § 3º, do artigo 1º, da referida MP, é claro ao estabelecer que a adesão ao PRR implica em confissão irrevogável e irretratável dos débitos (inciso I), a aceitação plena e irretratável, pelo sujeito passivo na condição de contribuinte ou de sub-rogado (inciso II), o dever de pagar regularmente as parcelas dos débitos consolidados no PRR e os débitos relativos às contribuições dos produtores rurais pessoas físicas e dos adquirentes de produção rural de que trata o art. 25 da Lei nº 8.212, de 1991, vencidos após 30 de abril de 2017 (inciso III), além da vedação da inclusão dos débitos que compõem o PRR em qualquer outra forma de parcelamento posterior (inciso IV).
Os mais otimistas (ainda) aguardam prorrogação do prazo, fiando-se na pressão a ser exercida sobre o executivo, dado o momento político, seja mediante edição de nova medida provisória, seja mediante conversão da existente em lei. Considerações de tal natureza, ainda que relevantes, não auxiliam a tomada de decisão, afinal, o prazo se esvai sem que haja sinalização de que tal providência será adotada. Outrossim, teoricamente no âmbito legislativo quaisquer providências em favor do contribuinte são possíveis (até mesmo a remissão! – vide artigo 156, inciso IV, do CTN), ainda que de difícil viabilidade no atual contexto.
Por fim, o parcelamento de dívida ativa, ou de créditos em constituição, frente, à existência de depósitos judiciais, no caso de inexistência, como inexiste, de ressalvas em favor do contribuinte, levantará tese jurídica em benefício da Fazenda Pública, já que o próprio artigo 6º, da MPV 793/17 estabelece conversão em renda, ou pagamento, em favor da própria Fazenda Pública no momento da análise do requerimento de parcelamento (a lei fala em “alocação do valor depositado”, antes do parcelamento), ou seja, os depósitos terão por destino, de uma forma, ou de outra, e salvo intervenção divina, o Tesouro Nacional.
É, ou não é, o inferno?
Neste contexto, e sem ficar em “cima do muro”, como muitos preferem, e sem descuidar as graves consequências decorrentes do atual quadro, recomendamos ao produtor rural que: a) recolha com regularidade suas contribuições devidas ao FUNRURAL partir do dia 30/04/2017; b) salvo modificação do quadro legislativo até o dia 29/09/2017 (mediante edição de nova MP ou conversão em lei que prevejam condições mais favoráveis – o que reputamos muito difícil), ou salvo decisão judicial expressa, parcele as obrigações remanescentes, após o desconto dos valores depositados, nos termos do PRR. É a atitude mais responsável.
Tais providências terão, no mínimo, o condão de afastar as consequências da mora (multas, juros e correção monetária pela SELIC) para os produtores que efetuaram o depósito dos valores. Além disso, afastarão as incertezas decorrentes de uma futura modulação de efeitos que não se sabe quando virá, se virá e em que termos virá.
Não seria surpresa se o Supremo modulasse os efeitos da decisão em condições mais favoráveis que o parcelamento previsto na MP 793/2017. Não seria a primeira vez que o contribuinte honesto se veria prejudicado com a crônica insegurança jurídica decorrente de nossa ordem jurídica, além de tudo, refratária à produção e ao trabalho.
Como exemplo, podemos citar o caso dos prazos de decadência e prescrição decenais, também das contribuições previdenciárias (coincidência?), estabelecidos no artigo 45 e 46 da Lei 8.212/91, que foram fulminados pela decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários 556.664, 559.882, 559.943 e 560.626.
Naquela assentada, onde se discutiam valores de muito menor relevância do que o FUNRURAL debatido no presente artigo, o Supremo Tribunal Federal, estabeleceu por razões de “segurança jurídica” que são legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento.
Em outras palavras, os contribuintes que não recolheram as contribuições previdenciárias, nos prazos estabelecidos nos dispositivos declarados inconstitucionais (arts. 45 e 46, da Lei 8.212/91), não seriam importunados pelo Fisco, ou seja, restaram dispensados de recolher suas contribuições (inclusive o FUNRURAL!). Aqui, a “coragem de assumir o risco de dever” foi premiada.
Por outro lado, os contribuintes honestos e corretos, que contribuíram sem nada dever, por razões de “segurança jurídica” não poderiam repetir o evidente e reconhecido indébito…, ou seja, restaram proibidos de cobrar judicialmente os valores pagos de forma indevida. Neste caso, a honestidade foi “maltratada”, para dizer o mínimo.
Como se vê, existe a probabilidade de que, tanto quanto na questão da prescrição e decadência decenais, e em diversos outros casos, a atual questão do FUNRURAL não se resolva no campo da Justiça, mas, sim, no da “Segurança Jurídica”. O produtor rural contribuinte do FUNRURAL, ou o responsável tributário, deve tomar sua decisão. Particularmente, não temos motivos para entender como viáveis concessões consistentemente maiores das que estão veiculadas no PRR, o problema é que algumas lideranças políticas e de classe não têm a coragem necessária para dizer.
Infelizmente é o que nos resta. Com o devido respeito, um Estado de Direito não se constrói desta forma. Nem Dante seria tão dantesco.
Fonte: diretoagrario.com
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