Discussões sobre o marco temporal

Publicado por Ana Lacerda em

Está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento do Recurso extraordinário nº 1.017.365, com “repercussão geral” reconhecida, que trata da controvérsia alusiva à definição do estatuto jurídico constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, nos termos do artigo 231 da Carta da República. O relator do caso, ministro Edson Fachin, assinalou ser imprescindível fixar interpretação constitucionalmente adequada ao estatuto da posse indígena de terras no Brasil, em todos os seus desdobramentos, entretanto, em seu voto, rechaçou a tese do marco temporal e reafirmou o caráter fundamental dos direitos constitucionais indígenas, que ele caracterizou como cláusulas pétreas.

 Pela tese do chamado “marco temporal”, os indígenas somente têm direito às terras que estavam em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por outro lado, a teoria do indigenato considera o direito dos índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas como um direito inato, congênito, sendo anterior à própria criação do Estado brasileiro, a quem caberia tão somente demarcar e declarar os limites territoriais. Utiliza o conceito de posse permanente, sendo declaratória, que é a derrubada do marco temporal.

Essa discussão sobre a validade da tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a depender do julgamento, além de gerar insegurança jurídica àqueles que já estão ocupando e produzindo em suas propriedades particulares, devidamente adquiridas por processos lícitos, pode causar reflexos catastróficos na sociedade e na cadeia produtiva.

Nesse sentido, o ministro Menezes Direito expressou que “a aferição do fato indígena em 5 de outubro de 1988 envolve uma escolha que prestigia a segurança jurídica e se esquiva das dificuldades práticas de uma investigação imemorial da ocupação indígena”. De fato, se voltarmos indefinidamente no tempo, ninguém seria dono de terra nenhuma. É preciso respeitar o direito de propriedade e o direito adquirido dos envolvidos nesses casos, devidamente assegurados pela nossa Carta Magna.

“Espera-se, pois, a manutenção do marco temporal, prezando pelo equilíbrio e equivalência dos direitos.”

Ana Lacerda

Assim, a manutenção do referido marco temporal uniformiza a interpretação a ser aplicada nos casos em julgamento, de modo que seja garantida a isonomia e a segurança jurídica nos processos demarcatórios, em nome da clareza que é fundamental para as decisões judiciais.

É evidente que a Lei Maior também se preocupa com os povos indígenas, tanto que no Art. 231, a Constituição Federal reconhece os direitos originários sobre as terras tradicionais a essa comunidade, cabendo à União demarcá-las administrativamente. Importante sobrelevar que, como regra geral, valendo o Marco Temporal são ressalvados os casos de esbulho por parte de não-índios.

Desse modo, harmoniza-se o direito à posse dos povos indígenas com o direito à propriedade privada, visando à pacificação social. Já é sabido e notório que são muitos e diversos os conflitos gerados dessa realidade e da falta do estabelecimento de um Marco Temporal para que se possa concluir esse tipo de demanda e oferecer seus efeitos aos interessados.

De outro norte, insta destacar que o STF é o guardião da Constituição da República, como instância recursal máxima do sistema judiciário brasileiro, e deve assim atuar.

Ao revés do proposto, a falta de um marco temporal deflagra ainda mais complexidade às análises e gera mais danos a muitas famílias que hoje ocupam e trabalham nessas propriedades.

É preciso voltar o olhar também a essas pessoas que ocupam de forma mansa, com boa-fé e legalmente, com titulação da propriedade emitida pelo próprio Estado, terras que seriam retiradas delas ao arrepio do que prevê a Carta Magna. São famílias que destinam a propriedade à função social que lhe cabe. Nela residem, trabalham, criam os filhos, construíram escolas; cemitérios, igrejas, geram empregos, produzem alimentos e formas de convivência social variadas; e que, sem o Marco Temporal, ficariam à mercê do reverso da ordem constitucional.

Sob esse quadro, não se pode olvidar que o simples fato de trazer à tona a discussão sobre uma propriedade ocupar ou não território indígena já é suficiente para que ela tenha que paralisar as atividades lá exercidas, ter licenças suspensas, perder o acesso ao crédito e muito mais. Esses prejuízos nunca são indenizados, mesmo quando comprovado que a terra não incide sobre tais territórios. Não é razoável que isso aconteça.

Em uma eventual revogação do marco temporal, pessoas como essas, que jamais usurparam o direito de outrem; que possuem títulos legítimos e ocupação centenária, perderiam os respectivos direitos que lhes assegura o comprometimento da sociedade como um todo aos compromissos constitucionais sobre o direito adquirido e a propriedade privada.

Espera-se, pois, a manutenção do marco temporal, prezando pelo equilíbrio e equivalência dos direitos. Que siga perdurando a Constituição da República Federativa do Brasil que, pela sua magnitude democrática, é considerada a Carta Cidadã.

Fonte: rdnews.com.br

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