Inversão de valores e inconstitucionalidade
O dano ambiental e sua responsabilização civil, devido à tamanha relevância, tem sido um tema bastante debatido nos últimos tempos.
Tendo como base e justificativa, o pressuposto do princípio do poluidor-pagador, somado ao fato de que o meio ambiente em condições de equilíbrio é um direito difuso, coletivo e para as presentes e futuras gerações, emergem numerosas teses que acarretam inovação à vigente ordem jurídica, todavia, sem se submeter ao devido processo previsto pela Constituição brasileira.
Segundo precedentes do STJ, por se tratar de direito difuso, a reparação civil ambiental assume grande amplitude, com profundas implicações na responsabilidade do agente degradador, além de estar protegida pelo manto da imprescritibilidade, mesmo não tendo previsão expressa em lei.
Em 1º/06/2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral de matéria relativa à prescrição do pedido de reparação de dano ambiental. O caso em tela é objeto do Recurso Extraordinário (RE) nº 654.833, pendente de julgamento no STF, e se refere a um fato ocorrido entre os anos de 1981 e 1985, ou seja, há quase quarenta anos, pela extração ilegal de madeira na comunidade indígena Ashaninka-Kampa. Vale ressaltar que decisão a ser proferida repercutirá diretamente em casos similares no futuro.
Sobre o assunto, recentemente, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, também defendeu a tese de imprescritibilidade do dever de reparar os danos ambientais causados. Em um trecho de sua fundamentação, constante em documento encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, a Procuradora profere “[…] independentemente de não estar expresso em texto legal”.
Desse modo, considerando a hipótese de um posicionamento favorável do STF, consequentemente, estaremos diante de inúmeras ações propostas em busca de indenização visando à reparação de danos ambientais causados há décadas. Nesse mesmo escopo, há que se destacar que o tempo decorrido dificulta até mesmo o direito de defesa.
Na prática, caso vigore o entendimento da imprescritibilidade, qualquer pessoa que cause um dano ambiental poderá responder pela reparação civil a qualquer tempo, indefinidamente.
Além disso, insta salientar que a fundamentação da Procuradora-Geral da República intenciona definir uma questão legal “independentemente” de não haver previsão expressa em lei. Evidente tentativa de violar nosso ordenamento jurídico e querer fazer valer o entendimento dos Excelentíssimos julgadores, vez que não há matéria legal expressa sobre o assunto.
É preciso lembrar que não cabe ao Judiciário legislar como bem entender, atropelando as leis existentes, causando insegurança jurídica a toda a sociedade, por uma atuação arbitrária, que fere a harmonia entre os Poderes. Deve-se respeitar a legislação vigente e não levar em consideração apenas a vontade e motivação particular de alguns.
É sabido que nos termos do art. 225, da Constituição Federal/88, nos casos de crimes ambientais, os responsáveis pela sua prática estão sujeitos a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Seria nessa última categoria que, caso seja julgado procedente, a responsabilização seria imprescritível.
Resta muito claro que o meio ambiente é protegido pela Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), que elenca as sanções penais e administrativas relativas a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. As penas possuem uniformização e gradação adequadas e proporcionais, ao passo que as infrações são claramente definidas.
A instauração da imprescritibilidade do dever de reparar os danos ambientais causados equivale a atribuir uma “pena” de caráter perpétuo, tendo em conta que a expectativa de cobrança dessa reparação acompanharia o agente por toda a sua vida.
Uma vez trivializada, a imprescritibilidade, além de causar insegurança jurídica, acarreta supressão de direitos. Não é admissível a deliberação sobre um conteúdo tão relevante e impactante sem uma ampla e pública discussão sobre o tema, e com a clara tentativa de substituir o Poder Executivo e o Congresso Nacional em suas funções de legislar.
“Nos casos em que couber, deve-se buscar um perene diálogo com o legislativo em busca de outras e nova soluções”
O enfrentamento aos crimes contra o meio ambiente e seus efeitos deve ser efetivado por intermédio de outros instrumentos legais, de forma preventiva, repressiva e de controle, que, sobretudo, sejam submetidos à Constituição Federal.
Não se trata de reduzir a importância do meio ambiente, bem fundamental à existência humana, que deve ser assegurado e protegido para uso de todos e preservado para as presentes e futuras gerações, consoante a própria Constituição Federal. Trata-se apenas de não permitir a instauração de responsabilidade com caráter perpétuo, sem qualquer critério legal.
Por fim, ainda vale questionar, como inexiste uma regulamentação específica sobre a matéria, caso o entendimento seja pacificado pelo STF, quem ficará responsável pelo controle e fiscalização dessa situação? Quem receberá os valores arrecadados? Qual destinação será dada? Não basta dizer sobre uma descabida imprescritibilidade, há muito mais envolvido nesse enredo.
Nos casos em que couber, deve-se buscar um perene diálogo com o legislativo em busca de outras e nova soluções, sem incorrer no equívoco de estremecer cláusulas fundamentais à segurança jurídica e à razoabilidade.
Artigo publicado no RD News
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