A reforma do código comercial e o agronegócio

Publicado por Ana Lacerda em

Ana Lacerda é advogada especialista em Direito Agrário e Ambiental

São muitos os elementos que requerem a atenção do produtor mato-grossense a fim de assegurar uma atividade exequível e construtiva. Um deles, que tem merecido destaque, é a reforma do Código Comercial, em tramitação no Senado Federal. Que, inclusive, encontra-se aberta à consulta pública.

A ementa do Projeto de Lei do Senado 487/2013 altera o Código Comercial. Esse passa a ser dividido em três partes: I) Parte Geral; b) Da Pessoa do Empresário; c) Dos Bens e da Atividade do Empresário; d) Dos Fatos Jurídicos Empresariais; II) Parte Especial, que disciplina os seguintes temas: a) Das Sociedades; b) Das Obrigações dos Empresários; c) Do Agronegócio; d) Do Direito Comercial Marítimo; e) Do Processo Empresarial; III) Parte Complementar, que contém as disposições finais e transitórias. Vale a pena ler todo o projeto e verificar como ele impacta a vida de cada um, entretanto, neste artigo, falaremos sobre as questões relacionadas ao agronegócio, item II, c.

A citada reforma traz consigo a justificativa da necessidade do aumento da segurança jurídica nas relações comerciais; a simplificação e a modernização da legislação correlata, bem como o aperfeiçoamento do ambiente de negócios brasileiro.

Importante salientar que tal atualização legislativa faz um meritório movimento ao dedicar um capítulo específico às atividades agropecuárias. É notório que dadas as dimensões desse tipo de investimento no Brasil, e mais ainda, em Mato Grosso, ele não poderia ser regido por leis gerais de direito empresarial, tendo em vista que se trata de um nicho bastante único e com inúmeras peculiaridades.

É relevante sublinhar ainda que o texto legislativo, nos artigos 26 a 31, dispõe sobre os “princípios” do agronegócio, garantindo o fundamental papel de alicerce relativo ao exercício.

Entretanto, em se tratando de um momento tão delicado no País, com aparente recuperação econômica, em grande parte decorrente das atividades do agronegócio, preocupa a possiblidade de maior burocratização do processo e alguns pontos específicos em relação à atividade mencionada que merecem zelo, vejamos:

Em que pese a Carta Magna se manifeste quanto à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária no art. 187, o projeto acaba por desproteger o produtor e o empresário rural, em consonância com o que prevê em seu art. 30: “Os participantes da rede do agronegócio são profissionais e possuem condição econômica e técnica suficiente para negociar e assumir obrigações relativas às atividades que exercem.”.

Não é necessário observar com lupa ou ser um cientista no assunto para perceber que o texto equipara todos os produtores de modo generalizado. Não se distinguem políticas para quem planta uma horta no fundo do quintal e dela retira subsídios para o sustento familiar de quem exporta bilhões ao mercado internacional de grãos ou algodão, por exemplo.

Essa questão evoca o art. 5º da Constituição Federal no que concerne ao Princípio da Igualdade, comentado nas seguintes sensatas palavras: O princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual: “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42).

Por essa razão a “parassuficiência dos que inserem sua atividade no agronegócio”, expressa no art. 26 do PLS é incabível, pois resta inequívoca a existência de partes hipossuficientes, considerando itens como estrutura, recursos humanos, expertise, conhecimento de mercado e tantos outros elementos imprescindíveis ao bom desempenho da prática.

Esse tipo de omissão legislativa torna-se, posteriormente, um proveitoso campo para conflitos devido à nebulosidade das questões contidas. Vale lembrar ainda que não apenas os produtores são integrantes da rede do agronegócio. Em longo prazo essa ausência de especificidade pode prejudicar o negócio e acarretar dinâmicas como o êxodo rural.

Outro ponto que é digno de alerta é o que prevê o art. 29 do PLS em pauta, o qual alude: “A intervenção jurisdicional na solução de conflitos de interesses no contexto do agronegócio é medida de caráter excepcional, limitada no tempo e no escopo, visando preservar as condições originalmente estabelecidas.”. Em combinação com o inciso III do art. 26, que menciona que um dos princípios aplicáveis ao agronegócio seja a “intervenção mínima nas relações do agronegócio […]”, essa norma infringe outra parte da Constituição Federal, também prescrita no art. 5º: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito […]”.

Não é possível estabelecer parâmetros do que seja uma intervenção mínima, mas é fato que se trata uma medida que pende à subjetividade. Situação inconcebível a um dispositivo legal.

Além disso, com o intuito de um enfoque de proteção meramente financeiro, o texto continua: no art. 28: “Na solução judicial ou arbitral de conflitos de interesses surgidos no contexto do agronegócio, deverá ser observada e protegida a finalidade econômica desta rede de negócios, ainda que em detrimento dos interesses individuais das partes que nela operam.”.

É evidente que tanto pelo interesse financeiro, quanto social a produção agrícola interessa a toda sociedade, atrelando essa relevância ao potencial agrícola do nosso País e Estado, configura-se um bem de importância coletiva. É por isso que a Lei Maior não se furta de difundir proteção ao agronegócio em numerosas citações de seu texto.

Estamos diante de uma questão complexa. Cabe ao Estado fomentar a produção agropecuária, considerando a intrínseca relação dela com a condição primeira para a tranquilidade social: um povo que não come, não pode ser um povo que esteja em paz. E para ademais disso, brasileiros e estrangeiros se sustentem da terra e de toda essa estrutura por ela balizada, de diversos modos.

Assim, com a finalidade de proteger a atividade agrícola e o interesse de todos que dela participam e dependem, é indispensável acompanhar esse tipo de processo, tanto no âmbito federal, quanto no estadual. Por esse conhecimento evitam-se incertezas e hostilidades, bem como da atuação ativa dos envolvidos decorrem a estabilidade social e a ordem pública.

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