Função social da propriedade

Publicado por Ana Lacerda em

Ana Lacerda é advogada especialista em Direito Agrário e Ambiental

O artigo 1228 do Código Civil assegura ao proprietário da terra o direito de usar, gozar e dispor dos seus bens, do mesmo que, o dota do poder de reavê-los de quem quer que injustamente os possua ou detenha. Nesse mesmo sentido, a Constituição Federal se manifesta sobre a matéria em seu art. 5º, inciso XXII onde expressa que: “É garantido o direito de propriedade”.

De modo simples, com base nos dispositivos apresentados, poder-se-ia pensar que “se o bem é meu, uso-o como preferir”. Mas, basta uma incursão breve sobre o direito e sobre as normas que regulamentam as propriedades para entender que não é bem assim, como venho retratando nos artigos anteriores.

Assim, ao garantir o direito à propriedade, o texto constitucional impôs explicitamente que esta deveria atender a sua função social (art. 5º, XXIII).

Chega a ter uma atmosfera poética a história da expressão “função social da terra”. Seu sentido é encontrado no conceito de economia rural, cunhado pelos fisiocratas: “a terra e seus produtos fazem viver o homem”. Mas, esse conceito é disseminado na cultura ocidental há longa data! Há referências bíblicas sobre o sustento que se tira da terra, e de povos que peregrinavam em busca da terra prometida. Até a carta de Pero Vaz de Caminha a respeito do Brasil de 1500, já citada por mim em outro artigo, remonta ao uso da terra para a produtividade: “em se plantando, tudo dá”.

Esse preceito, para alguns, revela a função social enquanto limitação ao exercício da prerrogativa, pois ainda que o cumprimento da função social seja essencial para que o proprietário usufrua plenamente de todas as faculdades que o direito lhe confere, sua eventual inobservância não poderá subtrair do proprietário inadimplente todos os seus direitos referentes ao bem. Segundo a doutrina, confundir a propriedade com sua função social daria margem até para justificar a expropriação sem o pagamento de indenização, além dos casos já previstos na Carta Magna.

Desta forma, entende-se pois, que a função social é exigência constitucional que, se efetivada, culmina no reconhecimento pleno do direito de propriedade.

Atualmente, a imposição constitucional, enuncia que a noção individualista de propriedade dá lugar à uma concepção que não nega o direito individual, mas o ajusta aos interesses sociais. A função social, portanto, impulsiona o individuo a contribuir com bem-estar da coletividade em detrimento de interesses unicamente individuais. Não por outra razão, a propriedade privada e sua função social foram listados como princípios da ordem econômica (art. 170, II e II, da CF/88).

No que tange à função social dos imóveis rurais, a Constituição Federal preceituou, em seu artigo 186, que será cumprida quando a propriedade rural atender simultaneamente segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Em outras palavras, a efetivação da função social por imóveis rurais, depende de obediência à ordem econômica, social e ecológica.

É bem verdade que em Mato Grosso, já denominado celeiro do Brasil, as terras estão, em grande maioria, ocupadas por lavouras e pela pecuária, mas é preciso estar atento ao que preceituam as leis para evitar possíveis transtornos.

De modo mais explícito, como expressa o Estatuto da Terra em seu art. 2º, § 1º, as funções que devem ser desempenhadas por intermédio do uso da terra, considerando a respectiva função social são: a) favorecer o bem-estar dos proprietários e trabalhadores que nela labutam e de suas famílias; b) manter níveis satisfatórios de produtividade; c) assegurar a conservação dos recursos naturais; d) observar as disposições que regulam as relações de trabalho entre todos os envolvidos.

Vale ponderar que, não se trata de construir soluções fáceis. As questões fundiárias são complexas e peculiares à vida em sociedade desde os seus primórdios, embora tenham sofrido readequações e ajustes consoante a humanidade também se desenvolve. Já foi a terra, incontáveis vezes, objeto de disputas bélicas, navegações globais e conflitos inenarráveis.

A Lei nº 4.504/1964, em seu art. 2º preceitua: “É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista no Estatuto da Terra”. Nessa perspectiva, pode sim o Estado intervir na economia, mas seus atos devem ser razoáveis e motivados.

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