Propriedade, empresa e função social no Direito Agrário

Publicado por Ana Lacerda em

DIREITO DO AGRONEGÓCIO

Quando pensamos em qualquer *empresa*, temos de ter em mente que esse é um
instituto de formulação originalmente econômica. Por ele se vislumbra uma
organização de capital e trabalho voltada para a produção ou intermediação
de bens ou de serviços para o mercado, coordenada pelo empresário, a quem
se destinam os resultados e se impõem os riscos.

Por aí, pois, há uma perspectiva diversa daquela contida no direito de
*propriedade*, em especial no que diz respeito à *finalidade* de bens que,
de algum modo, são submetidos ao poder de alguém.

De fato, na *empresa* esses bens passam a ser considerados no tocante ao
cumprimento de destinações específicas, voltados para a consecução de seu
potencial gerador de riquezas, de bem-estar social e de proteção ambiental.

Para que exista *empresa*, por outro lado, não se deve exigir patamares
mínimos de avanço tecnológico ou a adoção de soluções impostas por sistemas
econômicos dessa ou daquela natureza. A *empresa* representa, na verdade,
um instituto que tende ao universal, inserido em qualquer sociedade
organizada.

Nada importa, assim, para o surgimento da empresa que os resultados
auferidos sejam apropriados pelo empresário, pelo Estado ou mesmo
repartidos com pessoas que não tenham participado do desenvolvimento da
atividade realizada.

O que se constata é que, no âmbito da *empresa*, os bens que a compõem
passam, quaisquer que sejam eles, a ser avaliados sob a perspectiva da
riqueza que são capazes de gerar, e não apenas do valor que apresentem, de
modo isolado e desconectado de um ciclo de produção.

Temos aí, pois, uma faceta do que pode representar as noções de *função
social* e de *desenvolvimento sustentável*, muito semelhantes no âmbito do
Direito Agrário quanto ao seu sentido.

Em ambas as ideias, busca-se alcançar a coexistência de três valores
relacionados ao desenvolvimento da empresa: produção eficiente, garantia
aos direitos sociais e preservação ambiental.

Confrontemos, então, os institutos da *propriedade* e da *empresa*.

A *propriedade agrária* diz respeito principalmente — ainda que não
unicamente — ao domínio exercido sobre frações do território, seja ela
considerada individualmente, seja acrescida dos instrumentos próprios à
produção dos gêneros vegetais ou animais destinados ao consumo humano
direto ou indireto.

Para tanto, devemos considerar o preceito constante do artigo 1.228 do
Código Civil brasileiro.

Havendo *título* e *modo* adequados à aquisição da propriedade imobiliária
rural, o então *proprietário* disporá da faculdade de “usar, gozar e dispor
da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha”, fazendo-o de acordo com as balizas impostas pela
“finalidade econômica e social” do bem, pelo respeito à “flora, fauna,
belezas naturais, equilíbrio ecológico, patrimônio histórico e artístico”,
evitando-se ainda a “a poluição do ar e das águas”. É também vedado a tal
proprietário o abuso do direito, ou seja, a sua utilização cujo mote
preponderante seja causar malefícios aos demais.

Essa abordagem é objeto, sobretudo, do estudo do chamado *Direito das
Coisas*, no qual prevalecem as faculdades do uso, gozo, fruição e retomada
do desapossamento injusto. É o que dá os contornos mais marcantes do
direito de propriedade, o mais amplo dos direitos reais.

Tal perspectiva, porém, não conduz à necessária apreciação do bem sob a
ótica de sua destinação à produção, em especial com o exercício das
atividades agrícolas e pecuárias, tema preferencial do Direito Agrário.

Assim, ao pensarmos nas bases maiores desse ramo especial do Direito,
devemos, na verdade, ter em mente as relações derivadas da *empresa* e,
especificamente em relação à matéria ora tratada, àquelas relacionadas à
*função* que o fundo rústico ocupa nesse cenário, sobretudo considerando a
questão do desenvolvimento da chamada *atividade agrária.*

O objetivo dessa abordagem é, então, o de situar a questão da *função
social da propriedade agrária* a partir de uma perspectiva que esteja
atenta ao âmago das atenções do *Direito Agrário*, localizado em verdade na
*empresa*, instituto no qual a função social do bem imóvel agrário
efetivamente se realiza.

De fato, a propriedade da terra historicamente representou elemento a
partir do qual derivava, de modo diretamente proporcional, o poder político
e social, o que se deu durante longos períodos na história. Assim, apenas
lembrando das tentativas dos irmãos *Graco* na Roma antiga para limitar o
acesso particular à propriedade das terras até então públicas e alcançando
o período medieval, surgiu, naquele momento, uma das classificações mais
importantes pela qual se distinguem os bens, qual seja aquela que os
distingue entre *imóveis* e *móveis*.

Como ensina Comparato, nos momentos iniciais do surgimento de tal
classificação, as *res mobilis* eram consideradas *vilis* porque a
propriedade não atribuía ao seu titular um proporcional poder político, ao
contrário do que ocorria com a em relação ao fundo rústico
.

Essa situação foi alterada com o surgimento dos fenômenos que deram origem
ao regime capitalista — dentre os quais se destaca, inicialmente, a
chamada *Revolução
Comercial* —, provocando a paulatina e crescente acumulação de valores nas
mãos de setores sociais e econômicos distintos daqueles até então
tradicionais, o que modificou a importância relativa entre as duas classes
de bens.

A riqueza mobiliária vinculada à propriedade da moeda, dos metais preciosos
e à titularidade de créditos passíveis de cessão constituiu o fundamento
para a criação do sistema financeiro que, em pouco tempo, conquistou a
economia rural e até mesmo o Estado, cujo poder central mostrava-se ainda
débil e não totalmente consolidado.

Com o eventual inadimplemento das obrigações de restituição do crédito
concedido pelos novos detentores da riqueza àqueles que eram titulares
apenas ou majoritariamente de bens imobiliários de crescente iliquidez,
dava-se a consequente execução forçada das hipotecas que garantiam esses
mesmos créditos. Com isso, a titularidade da propriedade rural foi sendo
sistematicamente transferida aos recém-surgidos “capitalistas urbanos”.

Nesse novo ambiente, uma outra classificação se tornou útil, qual seja
aquela que distingue aqueles então chamados *bens de produção* e os *bens
de consumo*.

Sempre acompanhando as lições de Comparato,
aprendemos que não é qualquer qualidade intrínseca que distingue os bens
sob essa nova perspectiva. Os bens de *produção*, com efeito, podem ser
móveis e imóveis, indistintamente. Pode ser um *bem* *de* *produção* também
o *dinheiro*. Pode, enfim, ser a própria *terra* ou, mais convenientemente
denominada, para fins de nossas reflexões, o *fundo rústico*.

A atividade — concebida tal como a sequência de atos destinada a uma
finalidade comum — é reconhecida na análise econômica não pela criação
de *coisas
materiais*, mas pela criação de *valor*, isso enquanto inseridas no
estabelecimento. Depois de transferidos, os bens passam a ser considerados
*insumos* *de* *produção* ou *bens de consumo*.

*Bens de consumo*, portanto, são aqueles que se extinguem pelo uso ou que,
pelo menos, destinem-se ao uso, sem que se imponha a sua destruição
necessária.

Desse modo, a classificação entre *bens de consumo* e *bens de produção* não
se funda em sua natureza ou consistência, mas na *destinação* que se lhes
dê. A *função* que as coisas exercem é independente da sua estrutura
interna.

A *função*, por sua vez, é nas palavras de Eros Grau, “o poder que se
exerce não por interesse próprio ou exclusivamente próprio, mas por
interesse de outrem ou por um interesse objetivo”
.
O adjetivo *social* mostra que o objetivo corresponde ao interesse
coletivo, e não ao interesse pessoal do *dominus*.

A função social da propriedade corresponde, portanto, a um
*poder-dever*atribuído
e imposto ao proprietário.

Abrange tanto os bens como as relações jurídicas e ainda os negócios
jurídicos que podem ter funções ou utilidades na vida social.

Tal análise funcional do direito parece ter o seu ponto de partida na
monografia de *Karl Renner* de 1904, *Die Soziale Funktion der
Rechsinstitute.*

Outros, contudo, remetem as primeiras formulações desse conceito a *Auguste
Comte* e a *Leon Duguit*.
Este último negava, em relação à propriedade, o caráter de um direito a ser
atribuído ao indivíduo, entendendo-a, na verdade, como sendo unicamente uma
*função*. Recebeu críticas de *Pugliati*, *Perticone* e *Barassi*,
dentre outros.

Vê-se, pois, que a *função social* dos direitos em geral e, em
especial, do *direito
de propriedade,* é quase um “lugar-comum”, tal como reconhecido por
*Barassi* ainda na primeira metade do século passado.

Na verdade, tal conceito surgiu como contraponto ao sentido que prevaleceu
no *Code Napoléon* e, a partir dele, em todos os países da família
romano-germânica no tocante ao conteúdo do conceito de *propriedade* que se
referia, apenas e tão-somente, à posse, ao uso, ao gozo e à disposição como
componentes da relação entre a pessoa e o objeto do direito.

Justificativa tradicional para a existência e proteção à propriedade
privada era a de resguardar o indivíduo e a sua família contra as
necessidades materiais, ou seja, como forma de prover a sobrevivência.
Constituía, nesse sentido, uma reserva de valor que hoje coexiste com
outras, tais como a garantia de emprego e da previdência social.

De toda forma, quando se pensa na função social da propriedade, não há daí
uma direta e irrestrita limitação ao uso e gozo dos bens próprios pelo
titular de tal direito. A função social, sob a perspectiva jurídica, não
*condiciona* o exercício da propriedade, mas sim o *qualifica*, derivando
daí inúmeras consequências.

Dentre elas, há de se ver que o não atendimento de tal função social não
torna a propriedade resolúvel, ou seja, sujeita a um evento futuro e
incerto — o seu descumprimento — que possa determinar a sua extinção.

Representa, na verdade, o acréscimo de um *poder-dever* àqueles outros
próprios ao domínio, qual seja o de dar ao objeto da propriedade um destino
certo e determinado, vinculando-o a certo objetivo que é, no caso, o bem
comum.

Caso não cumpra o proprietário esse *poder-dever*, poderá então sofrer
algum modo de sanção pela ordem jurídica.

Essa sanção é, fundamentalmente, a desapropriação por interesse social para
fins de reforma agrária.

Tal possibilidade de desapropriação não constitui, na verdade, ato
vinculado do poder público, estando submetida aos critérios de
*conveniência* e de *oportunidade* que caracterizam a discricionariedade do
agente público e as limitações orçamentárias.

A Constituição brasileira, por sua vez, reconhece o direito de propriedade
em seu artigo 5º, inciso XXII, e determina que tal direito atenderá à sua
função social, o que se acha explicitado pelo inciso XXIII seguinte.

Refere-se o texto constitucional, ademais, ao atendimento da função social
pela propriedade *urbana* (artigo 182) e ao atendimento da função social da
propriedade *rural* (artigo 186).

Quanto à legislação ordinária, o Código Civil brasileiro atual menciona
expressamente a função social no seu referido artigo 1.228, parágrafo
primeiro.

Assim, a noção de função social, no Direito Agrário, não apresenta o vício
da generalidade e da abstração que se observa muitas vezes quando referida
aos institutos da propriedade, do contrato ou da empresa genericamente
considerados.

No Direito Agrário, o legislador se preocupou em definir quando a função
social será atendida, o que fez tanto na norma suprema — qual seja o artigo
186 da Constituição Federal, em seu *caput* e incisos — como na legislação
ordinária, o que se vê no Estatuto da Terra e na Lei 8.171/91, por exemplo.

Esse cuidado de tornar mais objetivas as cláusulas gerais, hoje inseridas
em profusão na legislação brasileira, é mesmo um bom caminho a ser seguido
em prol da segurança jurídica sempre desejada.

Fonte: conjur.com.br

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